Juventude e Melancolia
Dolorosamente (quase) adultos
Dolorosamente (quase) adultos
Texto por Bruna Eduarda Rudnick, Cecilia Sizanoski Sanchez, Jully Ana Mendes, Luana Lopes e Thiago Fedacz Anastacio. Revisado por Mário Messagi Júnior.
Os sorrisos da juventude escondem um momento muito difícil. Tomar consciência de si, entender a própria história, buscar uma identidade e aceitá-la e enfrentar o mundo injusto, cheio de riscos e com poucas oportunidades, são desafios que cobram um preço caro dos jovens
Mari sente o peso do mundo em suas costas. Hiago acha que o governo quer matá-lo. Carla desenvolveu depressão porque sofreu abuso sexual na infância. Patrick demorou para se entender e se aceitar. Anderson sofreu bullying e violência por ser gay. Lorenzzo convive com a depressão desde a adolescência. Ingridy se automutilou e levou três anos para voltar a querer a viver.
As histórias que vamos contar aqui são singulares, mas muito comuns. Fazem parte do processo, doloroso, de se tornar adulto, de se descobrir, se aceitar, de encarar o mundo, os preconceitos e as injustiças. Falar disso, em primeira pessoa, exige coragem.
São sete histórias, diferentes e iguais. Sete vidas, sete cabeças que dão carne aos números. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é uma das principais causas de adoecimento e incapacidade entre adolescentes, levando muitos jovens ao suicídio (é a quarta causa de mortes dos 15 aos 19 anos).
Segundo a entidade, a passagem da infância para a vida adulta é o momento quando os problemas mentais aparecem. O desejo de autonomia, a pressão para se conformar aos seus pares, a formação da identidade sexual, a exposição à pobreza, abuso e violência e mesmo o aumento do acesso à tecnologia são alguns dos fatores que explicam este processo.
Cada um dos nossos personagens têm seus motivos e sobre eles e para eles é este trabalho jornalístico. Vocês vão ver e ouvir, de viva voz, em vídeo, o que eles têm a dizer. E muitos especialistas, de áreas diversas, vão debater os problemas destes jovens, em podcasts. Esperamos que isso ajude nossos leitores a entender as diversas facetas da melancolia, mas, mais que isso, esperamos que isso ajude os jovens que entrevistamos a se entenderem e se amarem.
Uma companhia pra toda vida
Ilustração de Ingridy Joyce
“Depressão não passa, você aprende a conviver com ela. Ansiedade também”. Lorenzzo Gusso, 19, conta como aprendeu esta lição dolorosamente. Na adolescência, ele começou a perceber seus primeiros sintomas de depressão e ansiedade. Entre eles, a baixa autoestima, o isolamento e a dificuldade de se encaixar em grupos, sofrimentos que o levaram até mesmo à automutilação e pensamentos suicidas.
“Você tem fome, mas você não tem vontade de comer. Você não tem motivação para fazer as coisas, você se sente pior do que todo mundo em todos os aspectos”, conta Lorenzzo. “Você cria essas armadilhas pra você mesmo e acaba se colocando cada vez mais para baixo”.
Lorenzzo Gusso; Reprodução arquivo pessoal
Assim como Lorenzzo, Ingridy Joyce, 19, começou a sentir os sintomas da depressão e a se automutilar na adolescência, em torno dos 13 anos. A estudante de artes visuais conta que sofria com sentimentos de abandono e rejeição, que se intensificavam na escola. Além disso, não teve o apoio da mãe, que não a compreendia. “Eu comecei a ficar muito estressada, a ficar muito revoltada, a não gostar mais de nada, não sentir vontade de mais de nada”, conta. “Tentava formas de querer fazer alguma coisa, mas eu não conseguia, eu não entendia, eu não tinha o discernimento suficiente”.
Ingridy Joyce; Reprodução arquivo pessoal
Uma companhia para vida toda
As mudanças da juventude
Conforme os dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), um em cada cinco adolescentes no mundo todo sofre de transtornos mentais, como depressão e ansiedade, que podem levar a problemas como automutilação e suicídio. Ainda segundo a entidade, metade de todas as condições de saúde mental da população começam em torno dos 14 anos de idade, mas a maioria dos casos não é detectada nem tratada.
A depressão e a ansiedade podem se manifestar nos jovens por diferentes fatores. Além da genética, crianças e adolescentes que sofreram traumas, abandono e negligência são mais propensos a desenvolverem transtornos mentais. E, em torno dos 12 anos, o jovem passa a ter transformações no seu organismo: tanto no corpo, como engrossamento da voz nos meninos e surgimento de mamas nas meninas, como no cérebro.
Segundo o psiquiatra e chefe do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marco Antonio Bessa, durante a adolescência o ser humano tem o desenvolvimento do córtex pré-frontal, que fica na região da testa: “Essa área cerebral é responsável pelas funções mais sofisticadas da vida adulta, como pensamento abstrato, planejamento, e percepção de valores morais”. Assim, muito do que o adolescente vive neste período da vida vai ter impactos na sua vida dali em diante.
Marco Antonio Bessa; Reprodução arquivo pessoal
Para Francisco Maffia de Assis, professor de Filosofia na rede estadual de ensino, as relações sociais que se formam na idade escolar causam um impacto muito grande na mente do adolescente, considerando que é uma fase da vida onde as pessoas geralmente começam a formar sua identidade e procuram se encaixar em determinados grupos. De acordo com o professor, a escola é um espaço de disputas, que nem sempre são leais por conta do bullying e outros problemas: “Dentro de uma escola onde você tem esses espaços, o conflito é sempre exagerado por conta dessa necessidade de autoafirmação, de autoconhecimento. E os impactos que isso pode trazer para vida das pessoas são, no mínimo, imprevisíveis. Algumas pessoas podem ter ansiedade, outras, depressão, outras vão ficar mais agressivas”, afirma.
Francisco Maffia de Assis; Reprodução arquivo pessoal
Para a terapeuta e musicista Jana Felini, o fato do grupo estar em um processo de independência em relação aos pais é um fator que influencia muito a mente juvenil. “A juventude é o momento em que você, enquanto ser humano, está constituindo a sua personalidade independente dos pais. Às vezes a conquista dessa nova posição exige alguns movimentos que são de rompimento, então é muito normal que o jovem trilhe o caminho da melancolia, do próprio isolamento”, explica. Cada situação é única. Para Jana, o jovem precisa de espaço, precisa formar sua personalidade sem intervenção, quando não for necessária. “Eles precisam ter esse tempo e encontrar essa posição, se questionar: ‘O que eu gosto? O que eu quero? Pra onde vou?’ independente da família”, relata Jana.
No entanto, muitos sucumbem à melancolia. Com esta gama de vivências na adolescência, é difícil mensurar os efeitos que uma possível depressão ou ansiedade podem ter na vida adulta. Mas, para Bessa, isso vai depender de uma questão importante: se a pessoa é tratada ou não. “Aqueles que têm a possibilidade de serem tratados tanto do ponto de vista psiquiátrico, ou que são medicados, ou aqueles que não necessariamente precisam de remédio mas que têm acesso à alguma forma de terapia ou algum grupo de apoio, vão ter um prognóstico melhor. Aqueles que não são tratados têm o risco desses problemas se cronificarem”, afirma.
Terapia e isolamento
Lorenzzo procurou ajuda e passou a fazer terapia, o que, segundo ele, não curou sua depressão, mas o ajudou a lidar melhor nos anos seguintes. A chegada da pandemia, porém, fez com que os sintomas ficassem mais fortes. O estudante conta que sempre foi um tanto hipocondríaco (condição que leva a pessoa a se preocupar excessivamente com a possibilidade de estar doente), então tratou-se de se isolar completamente. Mas, a partir disso, ele começou a ter crises de pânico, e outros sintomas da ansiedade voltaram a ser mais presentes.
Na terapia, ele questionou o motivo disso e entendeu que o isolamento incitou seus sintomas: “Eu era uma pessoa ansiosa. Essa ansiedade se intensifica porque você está parado em casa, você interage muito menos. Você pensa mais, e quanto mais você pensa e fica sozinho mais você tende a intensificar seus próprios pensamentos. Os bons e os ruins, né?”, diz.
Em Lorenzzo, um dos efeitos das suas crises foi não conseguir mais enxergar expectativas para o futuro, algo comum em quem sofre com depressão e ansiedade: “Eu não tenho mais objetivo na vida na verdade. Para que eu vou fazer as coisas né? Para que viver? Para que trabalhar? Procurar alguém?” Porém, ele espera que após a pandemia, que foi tão impactante para sua vida, ele consiga ter mais perspectivas: “Eu quero que as coisas melhorem logo, que eu fique vacinado, para eu voltar a procurar um objetivo na vida, sabe? Seja me formar ou ser um jornalista bom, ou só simplesmente ser feliz. Encontrar um propósito. Então a expectativa é ter a expectativa”, completa.
Já Indridy conta que fazer terapia durante a adolescência foi fundamental para lidar com a depressão ao longo dos anos, mesmo tendo sido um processo difícil: “Eu tive a sorte e o privilégio de ter alguém para pagar uma terapia pra mim. Nesse período eu lembro de repetir várias vezes a mesma coisa, repetir várias vezes a baixa autoestima, repetir a insegurança, o sentimento de abandono, o sentimento de rejeição, eu tive que lidar e tive que errar muito também, tive que sofrer muito sozinha e também com as pessoas”.
Nas suas palavras, ela demorou três anos para “conseguir se livrar da depressão”, embora afirme que não tenha sido uma cura completa, já que ainda tem “resíduos” que carrega desde a época da adolescência: “Não que eu tenha depressão hoje em dia, mas ainda tenho muita coisa que eu tenho que trabalhar comigo mesma, então nunca foi 100% uma cura”, conta Ingridy.
E agora no presente, onde ela já lida melhor com o que viveu, seus objetivos são melhorar cada vez mais: “Eu agora sei que eu tenho que me encontrar, ainda estou no processo para isso e é assim que eu tô lidando com esse problema que sempre foi tão presente na minha vida, né? De não saber quem eu realmente sou e o que eu realmente quero”.
Sobre depressão e pandemia
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O sentimento do mundo
Ilustração de Ingridy Joyce
Hiago Rizzi Zanola; Reprodução arquivo pessoal
Mariana de Souza, 24, sofre com suas crises de ansiedade. Ela estuda jornalismo na UFPR e é ansiosa desde que se conhece por gente. Uma de suas primeiras memórias da vida diz respeito a isso: “Eu tinha uns quatro anos e era tarde da noite. Minha mãe foi arrumar o quarto, eu fiquei sozinha na cozinha e eu comecei a chorar e pensar que um dia meus pais e avós iam morrer e eu ia ficar sozinha. Eu sempre tive essa ansiedade”.
Os motivos para esse problema dar as caras para ela são vários. Desde conflitos interpessoais até mesmo as atividades domésticas, que com frequência ocupam suas madrugadas quando as crises aparecem: “Eu percebi que eu não gosto de dormir. Para que é que eu vou dormir? Eu tenho tanta coisa para fazer…”
No entanto, o fator que mais a afeta é outro: “O negócio piora quando em vez de fazer um monte de coisas que nem uma doida, eu sento e começo a chorar. Choro porque saio na rua e tem gente morando na rua, porque a gente tem um presidente de merda, a política não me dá nenhuma perspectiva de que eu vou ter um futuro minimamente bom nesse país”.
O redator e estudante de jornalismo da UFPR Hiago Rizzi Zanola, 21, conta que também se sente afetado pelas questões políticas e socioeconômicas: “A minha intenção é entrar numa pós-graduação. Mas se antes já era difícil, por saber que para trabalhar com pesquisa você não vai ser reconhecido, agora está ficando cada vez pior. Se antes a gente não tinha razão para acreditar e se orgulhar, agora eles estão praticamente dizendo 'vão embora, vamos matar vocês”.
O sentimento de falta de perspectiva se torna cada vez mais frequente entre os jovens. Segundo a pesquisa de 2019, Projetos de Vida e Felicidade de Jovens Brasileiros, cerca de 45% dos estudantes brasileiros de ensino médio não sabem dizer como será ou não conseguem imaginar seu próprio futuro. A pesquisa foi realizada pelas psicólogas Mariana Fancio Gonçalo e Valéria Amorim Arantes e publicada na Revista Educação e Linguagens.
Mariana Souza; Reprodução arquivo pessoal
Tristeza em comum
Mari, como é chamada por seus amigos, conta que mora na Casa do Estudante, onde convive diariamente com pessoas que lidam com problemas muito parecidos com os dela, como dificuldades econômicas, desigualdades sociais e diversas frustrações: “É bom saber que tem pessoas passando pelos mesmos problemas que eu e nos mesmos recortes de sociedade em que eu estou. Eu me sinto um pouco mais comum. Mas ao mesmo tempo é ruim pensar que são muitas pessoas”.
Esse grande número de jovens sem esperança pode se relacionar com os índices “catastróficos” de desemprego. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 31% daqueles que têm entre 18 e 24 anos estão desocupados em 2021. Este é o segundo maior índice da história, perdendo apenas para o terceiro trimestre do ano anterior.
Fabiano Dalto
Reprodução arquivo pessoal
Juventude e melancolia sob aspectos econômicos
O economista, especialista em políticas públicas e professor da UFPR Fabiano Dalto explica: “Se o jovem não encontra seu emprego dos sonhos e encontra um que não é nem sonhado nem desejado, simplesmente para sobrevivência, é claro que a perspectiva futura vai ser muito ruim”. Ele também relembrou que, entre 2003 e 2013, os salários e o número de empregos tinham uma tendência ao crescimento.
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Falta de perspectiva
Se analisados os relatórios de felicidade da Organização das Nações Unidas, pode-se perceber que os momentos de melhores notas do Brasil, coincidem com o período citado pelo economista. O índice cresce até 2013, quando atinge seu pico, com 7,14, e daí em diante sofre uma sequência de quedas contínuas, chegando em 2020 com uma nota de 6,11.
Nadya Pellizzari; Reprodução arquivo pessoal
Quando pensar muito nestes aspectos afeta demais Mariana, e ela não consegue parar de chorar, ela conta que vai atrás de medicamentos: “Por ser ansiosa, quero sempre ter controle sobre tudo, e quando não consigo é terrível. Eu penso ‘Vou tomar esse remédio aqui e vou ter um pouquinho mais de controle sobre mim mesma, então vou parar de chorar’”.
Sobre a busca por medicamentos para tratar questões de saúde mental, a psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Londrina, Nadya Pellizzari, aponta uma problemática: “O remédio tem que ser a última opção. A contenção tem que ser através da terapia, da fala e do acolhimento. Não adianta a gente pensar que o remédio vai resolver todos os problemas”.
Poder público
Este foi o pensamento inicial de Mari também, mas ela teve grandes dificuldades de conseguir acompanhamento psicológico para baixa renda. Desde a pouca informação sobre as possibilidades até encaminhamentos que não deram certo. Ela conta que chegou a ser encaminhada para um psicólogo e um psiquiatra pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas só a consulta psiquiátrica deu certo.
Nadya explica que na realidade não existem consultas psicoterapêuticas pelo SUS. Em casos graves, os pacientes são encaminhados para os CAPS, já casos leves e moderados de ansiedade ou dificuldade de atenção, como o de Mariana, devem ser enviados a clínicas de universidades, cujo acompanhamento é feito por graduandos de psicologia. Existem ainda outros mecanismos de psicologia do SUS, mas nenhum oferece sessões de terapia para casos leves.
Outra frustração de Mariana é sua vontade de resolver todos estes problemas sociais e a consciência de que sozinha não tem como fazer isso. Para alcançar essa solução, Fabiano Dalto acredita que dois são os pilares a serem trabalhados: faltam políticas que visem o pleno emprego no país e investimento em infraestrutura social, como em saúde, saneamento, transporte e meio ambiente. Ele defende que o responsável por isso é invariavelmente o setor público.
No entanto, enquanto esses problemas não são enfrentados, o que resta é tentar soluções paliativas, como a terapia. Mas esta não é a única forma de lidar com a saúde mental. Isso é o que diz Hiago, que, mesmo assim, acredita que é a opção que funciona melhor para sua geração. Ele defende três hábitos que o mantém bem mentalmente: “É a minha tríade pessoal: alimentação, atividade física e terapia”. Quando questionado se tinha algo mais a acrescentar ou desabafar, ele responde: “Não, eu estou tranquilo. Terapia né, gente?”.
Sobre ansiedade
Aceitar-se diferente e encarar a sociedade
Ilustração de Ingridy Joyce
“Teve um belo dia em que ele tentou me matar dentro do colégio. Ele colocou uma faca no meu pescoço, dentro de um banheiro. Eu não sei como eu consegui sair dessa situação, eu sei que eu sofri bastante”. “Ele”, no caso, era um colega da escola que fazia bullying diariamente com Anderson de Almeida Campelo, 23. Esse foi o ápice de uma série de agressões físicas e psicológicas que ele enfrentou durante a infância e a adolescência. No sexto ano do ensino fundamental, Anderson tentou se suicidar. Depois disso, por causa do trauma, ele parou de frequentar a escola por cinco anos.
Anderson relata como a tentativa de assassinato desencadeou traumas e transtornos psicológicos: “Desse período que o menino tentou me matar até eu voltar a estudar e eu começar a me entender, eu tive muito problema com depressão e ansiedade. Eu me automutilava”. Anderson conta que sempre foi uma criança mais "afeminada", nas suas próprias palavras.
Anderson Campelo; Reprodução arquivo pessoal
Mas quando criança ele nem sabia porque era perseguido: “Na época eu não entendia o que era ser gay, o que não era, como era a minha vida”. Anderson sofreu com homofobia e transfobia diariamente do segundo ao quinto ano da escola e relata que tudo o que os agressores queriam provar era que ele não podia ser quem ele era.
O entendimento de si mesmo
“Identidade” é substantivo feminino: "Série de características próprias de uma pessoa ou coisa por meio das quais podemos distingui-las", define o dicionário Michaelis da Língua Portuguesa. A transição da infância para a vida adulta é marcada pelos conflitos da adolescência, que consistem na quebra dos pressupostos familiares e no processo da formação de identidade dos indivíduos e nos embates entre as diferenças. Marcel Jeronymo, assessor jurídico do Grupo Dignidade em Curitiba, fala do "oceano" de possibilidades no campo da sexualidade, mas não apenas nele, e da necessidade da sociedade de colocar esse "oceano" em um "aquário" - essa seria a base da dificuldade de se entender o outro.
Marcel Jeronymo; Reprodução arquivo pessoal
Anderson, além de sofrer com a perseguição desde a infância só por ser quem ele era, acima de tudo não entendia quem era. Ele encontrou na família um ponto de apoio, seja quando a sua irmã o defendeu quando o buscou na escola, ou quando ele foi cuidar de uma tia com câncer de mama. “Foi quando eu comecei a entender que ninguém tinha nada a ver com a minha vida”, diz. Anderson conta que tentou se matar algumas vezes, mas ressalta a importância de não apenas ter uma identidade mas também de reconhecê-la: “Todo mundo deveria se entender e entender que está tudo bem ser quem você é”. Marcel Jeronymo reforça: "É bom lembrar que 'ser quem se é' é algo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF)".
Terapia e aceitação
Patrick Tales Gonçalvez é um jovem negro e gay, ele conta como os pensamentos homofóbicos influenciaram a maneira de se encarar: “Pensamento de que eu não podia me amar ou me aceitar”. Com um ambiente familiar instável e o sentimento de inadequação ele desenvolveu uma estratégia para lidar com os desafios. “Eu não podia ser vulnerável, falar nada, eu tinha que ficar fingindo ser outra pessoa, e depois de um tempo eu acabei acreditando que eu era essa outra pessoa. Eu me sentia vazio porque eu não sabia quem eu era de verdade”, conta.
Patrick Gonçalves; Reprodução arquivo pessoal
Um assalto mudou a sua percepção. Com uma arma apontada para ele, Patrick se desestabilizou. Então, percebeu que o controle era uma ilusão, a necessidade de procurar ajuda ficou clara. Na terapia vieram à tona as consequências disso: “Eu tinha que ser o melhor em tudo e ter o controle em todas as situações”, confessa.
O processo de uma terapia é complicado, o paciente é preparado para encarar coisas das quais ele fugia. Patrick brinca com o dia da terapia: "quinta-feira é o meu dia de ficar triste”. Era o dia em que ele tinha que enfrentar os seus problemas. “Era obrigado a me tratar com mais gentileza, a me entender”. Ele descreve o processo como “aprendendo a me amar”. Ele percebeu que poderia se amar, conseguiu entender e externalizar sua identidade. “Antes eu sempre tinha que ser o cara hétero, hoje eu não sinto mais essa necessidade de ficar performando uma masculinidade. Hoje eu posso ser mais eu”, diz. Para ele a terapia e o apoio dos amigos foi fundamental para perceber que ele merecia sua própria atenção.
Sozinho consigo mesmo
Com a pandemia, o isolamento social foi assustador para Patrick, agora ele era obrigado a conviver consigo mesmo. Então a terapia trouxe outra descoberta: “Percebi que eu realmente não estava feliz no curso e só continuava porque todo mundo falava que eu era bom”, conta. Com isso vem um medo, uma insegurança e o medo da "falha".
As tantas possibilidades oferecidas nos dias de hoje não são tão possíveis aos olhos de Patrick, já que os limitadores existem, ele entende que essas possibilidades na verdade “não ajudam a gente a se descobrir”. As possibilidades aparentemente maiores dessa geração comparadas com as de gerações passadas têm influência direta na relação do jovem com a melancolia. “Eu só ficava performando coisas que tinham me falado para ser, eu me sentia separado de mim”, conta. As possibilidades são múltiplas, mas os limitadores também e as pessoas não falam sobre eles.
Um corpo quebrado
Ilustração por Ingridy Joyce
Carla (pseudônimo) tem, hoje, 17 anos. Jovem, mas mesmo assim já enfrenta há muito anos a depressão. Quando criança, sofreu abuso sexual de colegas mais velhas de escola, o que fez com que desenvolvesse depressão infantil. Além do abuso sexual, Carla sofria ameaças constantes, o que faziam com que ela sentisse medo de contar sobre a violência que estava sofrendo. “Eu queria pedir socorro, porque uma criança de cinco anos que toma banho, deita, chora e fala ‘eu quero morrer pra acabar com isso’, não é normal”, conta.
As consequências da violência estão presentes até hoje na mente da jovem. Apesar de já ter tentado suicídio duas vezes quando mais nova, foi somente aos 17 anos que decidiu procurar ajuda especializada, quando se deu conta de que conseguiria finalmente concluir o seu objetivo. “Eu procurei ajuda porque sabia que dessa vez eu ia conseguir”, diz.
O abuso sexual é a realidade de milhares de crianças e adolescentes por todo o Brasil. Segundo dados publicado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Disque 100, número para fazer denúncias sobre violação dos direitos humanos, registrou no período de janeiro a maio deste ano mais de 6 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Apesar do número já ser expressivo, ele pode ser ainda maior. De acordo com o relatório de atividades de 2019 da Childhood Brasil, apenas cerca de 10% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são levados às autoridades.
De acordo com a psicóloga Camille Saraiva (CRP 08/27779), a forma como as vítimas enxergam o abuso sexual varia segundo a idade. Quando o ato acontece com crianças, a psicóloga diz que ele não é percebido ainda como uma violação do próprio corpo, já que o menor ainda não tem consciência que aquilo é errado e por isso, muitas vezes, são convencidos a se manterem em silêncio.
Camille Saraiva
Reprodução arquivo pessoal
TW: Abuso sexual
Um refúgio na ficção
Como uma tentativa de esquecer os problemas que a cercavam, Carla encontrou refúgio no universo literário. Prova disso é a sua estante repleta de livros, que vão desde romances de época até histórias de terror clássicas de Edgar Allan Poe. Para ela, os livros funcionam como uma válvula de escape, um refúgio. “Desde que aprendi a ler, eu lia antes de dormir e ficava pensando: ‘Nossa, eu queria ser forte igual à Mônica pra bater nessas pessoas que fizeram isso [que a abusaram], ou ter um plano infalível pra elas e os problemas sumirem da minha vida’”.
A falta de perspectiva também era algo presente antes da ajuda psicológica. Foi só depois dos 15 anos que realmente começou a acreditar em um futuro para si. Antes, o futuro era completamente nublado. Hoje, dependendo do dia, um horizonte de objetivos a serem cumpridos se mostra mais claramente. Agora a jovem sabe o que quer e luta para isso.
Estante de livros da Carla; Reprodução arquivo pessoal
Traumas superados
Ilustração de Ingridy Joyce
Carla conta que a terapia a tem ajudado muito, é graças a ela que os problemas estão sendo melhor trabalhados. Uma das consequências do tratamento tem sido o desenterrar de lembranças que tinham sido esquecidas. Segundo ela, são como clarões que acontecem em momentos aleatórios. “Às vezes tô, sei lá, lavando uma louça, e me vem um flash de alguma coisa que aconteceu. Estou vendo que as coisas foram bem mais pesadas do que eu lembrava. Minha cabeça simplesmente tinha apagado [essas memórias]”, conta.
A psicóloga Camille Saraiva explica que quando passamos por experiências traumáticas, a mente tende a eliminá-las dependendo da situação. “É por proteção. O cérebro percebe que aquilo é muito nocivo e então apaga”, explica. Ela ainda conta que, quando estimulado, o cérebro pode refazer as sinapses que compunham a lembrança.
O problema da violência e do abuso sexual não tem uma solução simples. Para o promotor de justiça Eduardo Monteiro, a solução parte de uma tarefa colaborativa, a partir de um trabalho integrado entre diferentes áreas de atuação, como a assistência social, a psicologia e a saúde. Dessa forma, seria possível evitar que novos casos de abuso acontecessem. Segundo o promotor, o tema ainda precisa receber mais atenção: “Esse tema nunca foi relevante politicamente, embora todos sejam condescendentes e entendam a gravidade, isso nunca foi uma prioridade. Quando se tornar uma prioridade nós vamos ter os dados de forma clara e os serviços estruturados especialmente para isso”, afirma.
Um conselho que Carla recebeu do tio, e que talvez seja útil para aqueles que estão passando por problemas parecidos ou similares, é deixar os problemas no passado, perdoar o que aconteceu e se imaginar em uma praia, onde se segue em direção ao sol em busca de um abraço quente e reconfortante.
Desenho de Carla
Reprodução arquivo pessoal
Eduardo Monteiro; Reprodução arquivo pessoal
Fugir para arte
Ilustrações e foto de Patrick Tales Gonçalves
Gladis em uma das apresentações de seu grupo de dança;
Foto por Paulinha Koslowski
A arte, para quem passa por um momento de melancolia, pode ser um escape. Tanto consumir, quanto fazer arte. Carla se refugiava na literatura; Lorenzzo tocava piano; Ingridy desenhava. Buscar se expressar é, de alguma forma, buscar a cura, buscar o próprio bem-estar.
A chegada da pandemia e do isolamento social tornou mais evidente o quanto a arte tem sido uma importante companheira das pessoas neste período. Segundo pesquisa “Hábitos culturais II”, realizada em conjunto pelo Itaú Cultural e pelo Datafolha, o consumo de apresentações artísticas de teatro, dança e música disparou durante a pandemia. Enquanto em 2020, 20% dos indivíduos diziam que consumiam esse tipo de atividade no ambiente on-line, em 2021, o índice dobrou e subiu para 40%.
Para especialistas, esta foi forma que as pessoas encontraram para se sentir melhores nesse período cheio de adversidades. Para a artista e docente em dança Gladis dos Santos, foi a dança que a salvou de um momento de crise profunda. “A melancolia é um tipo de perversão, é uma sensação de desinteresse pela vida, um vazio de sentido. Já tive duas depressões profundas, então eu sei muito bem o que é perder o desejo de viver”, conta. Ela teve depressão aos 17 anos, enfrentou uma doença incapacitante, ficou de cama, usou antidepressivos. “E foi aí que a dança me trouxe esse desejo de viver, porque eu acho que a arte aciona, coloca em movimento o desejo de vida”, afirma.
Gladis não é a única. A arte estetiza a tristeza, ao mesmo tempo que a sublima e combate, seja no universo literário de Carla, nas ilustrações de Ingridy ou na musicalidade de Lorenzzo. Jana Felini explica o quanto a música age nesses momentos. “Tem esse papel fundamental como uma companhia. Parece que você é acompanhado por aquilo e não está mais sozinho na busca por essa individuação, na busca por esse discurso, na busca por esse caminho”, afirma. A música, segundo ela, é uma ferramenta fundamental para se encontrar, para definir a própria personalidade. É “como se você estivesse ouvindo algo que te preenche, algo que faz sentido pra você e que às vezes você não encontra no seu próprio ambiente, no teu entorno”, explica.
Lorenzzo Piano
Arte como terapia
A arte é uma eficiente aliada contra a melancolia, no Brasil, há muito tempo. Em 1944, a médica psiquiatra Nise da Silveira começou a trabalhar no corpo clínico do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro. Na época era comum que os pacientes da instituição levassem choques elétricos, sovas, entre outras coisas. Nise se recusou a usar esses métodos e passou a levar para os pacientes telas em branco, tintas e pincéis. O resultado foi surpreendente. Os enfermos tiveram uma melhora no comportamento e ainda produziram verdadeiras obras-primas.
Nilse da Silveira; Reprodução web
Mais de 70 anos depois, o método utilizado pela psiquiatra ainda é muito eficaz quando o assunto é saúde mental. Segundo o livro Art Therapy: Enhancing Psychosocial Nursing (Arteterapia: Aprimorando a enfermagem psicossocial), em um estudo de enfermagem psicossocial, realizado em 2002, a arteterapia fez com que pacientes depressivos apresentassem grande melhoras. Os enfermos passaram a cumprir metas como a recuperação e a instilação de esperança. Além disso, a implantação do método melhorou a qualidade do tratamento, aumentou a expressão verbal daqueles que o utilizavam e facilitou a percepção das questões dos pacientes.
Se os jovens narrados neste texto buscaram a arte por instinto, porque sentiam que precisavam disso, a ciência aponta para a mesma direção. Ela se tornou, longe do que muitos podem pensar, uma questão de saúde.
Lorenzzo Gusso tocando piano
Vídeo: Arquivo pessoal